terça-feira, 15 de junho de 2010

Análise exegética de Mateus 5.3,10 – As bem-aventuranças e o Reino dos céus


André Luiz Alves da Silva

1. INTRODUÇÃO
            O presente estudo visa analisar exegeticamente a perícope de Mateus 5.3-10, considerando principalmente os versículos 3 e 10. Para isto desenvolvi o trabalho através da comparação de pelo menos cinco versões brasileiras diferentes da Bíblia. Também fiz um comparativo das bem-aventuranças de Mateus com as do evangelho de Lucas, onde neste há um paralelismo com maldições correspondentes a cada uma das que ele apresenta. Em seguida considerei, através de consulta a obras a respeito do tema, o contexto literário, histórico e sociológico em que Mateus escreveu o seu evangelho. Após as análises passei a interpretação baseada nesses contextos, nos quais sugeri uma possível aplicação de cunho social.
 
2. COMPARAÇÃO DAS TRADUÇÕES
Mateus 5.3
Felizes os pobres de coração: deles é o Reino dos céus. (TEB)[1]
“Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus. (NVI)[2]
Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. (ARA)[3]
Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus; (ARC)[4]
Benditos os pobres no espírito, porque deles é o reino dos céus. (NT Interlinear Grego-Português)[5]
Mateus 5.10
Felizes os perseguidos por causa da justiça: deles é o reino dos céus. (TEB)
Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o Reino dos céus. (NVI)
Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. (ARA)
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus; (ARC)
Benditos os perseguidos por causa de(a) justiça, porque deles é o reino dos céus. (NT Interlinear Grego-Português)

 A TEB é a única das 4 versões consultadas que utilizou a palavra “feliz”, para a palavra grega “makarioi”, as demais (NVI, ARA e ARC) utilizaram a expressão mais bem conhecida por nós: “bem aventurados”. No Novo testamento interlinear grego português a expressão é traduzida por “Benditos”.
No v.3 a TEB, a NVI e ARC traduziu a palavra grega por “pobres”. Na ARA é a expressão é “humildes”.
A TEB traduz a expressão grega “de coração”, a NVI por “em espírito” e ARC e ARA traduz “de espírito”.
Em todas as bem-aventuranças, a TEB mantém uma estrutura com “:” (dois pontos), excluindo uma palavra do grego, após falar do sujeito bem aventurado, em seguida ao “:” é descrita a bem-aventurança que  está atribuída ao sujeito. As demais versões consultadas utilizaram as preposições “pois” (NVI) e “porque” (ARA e ARC), indicando a justificativa da afirmação do sujeito que é bem aventurado.

3. PERÍCOPE
O texto das bem-aventuranças é do versículo 3 ao 12, este último encerra com uma exortação à alegria em razão de uma recompensa nos céus e a lembrança dos profetas perseguidos no passado. Os versículos 11 e 12 são da mesma perícope, mas estão fora do quiasmo, portanto podem ser estudados separadamente, isto pode ser observado analisando a estrutura semelhante com que se apresentam as bem-aventuranças: primeiro temos o tipo de sujeito bem aventurado e, segundo descreve o tipo da bem-aventurança. Embora o versículo 11 apresente uma bem-aventurança, sua estrutura é diferente dos vv. 3-9.
Os versículos 3 e 10 de Mt 5 formam uma espécie de moldura da perícope, pois ambos terminam com a expressão “Reino dos céus”. Temos aqui então o quiasmo proposto por Paulo Garcia[6].  
Mateus muda propositalmente a estrutura das bem-aventuranças colocando um quiasmo porque é uma estrutura literária de um escriba judeu. 

4. COMPARATIVO COM LUCAS
Em Lc.6.20-23, Lucas também apresenta as bem-aventuranças. No entanto enquanto em Mateus temos oito bem-aventuranças, sem contar a que está fora da perícope de 3-10, Lucas apresenta apenas quatro, mas apresenta a antítese, que são os “ais” traduzidos na TEB com o antônimo de feliz “infeliz” dos vv.24-26. Fazendo assim uma correspondência de “ais” para cada uma das bem-aventuranças. Vamos nos concentrar apenas no texto principal de nossa análise. Veja a comparação abaixo utilizando a TEB:
Mt.5.3
            “Felizes os pobres de coração: deles é o Reino dos céus.”
            Lc.6.20
            “Felizes, vós, os pobres, o Reino de Deus é vosso.”
            Veja o “ai” correspondente em Lc.6.25:
            “Infelizes, vós os, os ricos: já tendes a vossa consolação.”

5. MACRO ESTRUTURA LITERÁRIA
Mateus apresenta cinco sermões. O texto de nosso estudo faz parte do primeiro discurso. Há muita semelhança e paralelismo com o Pentateuco. Até no número de discursos é semelhante ao número dos livros de Moisés.
            O primeiro discurso inicia-se com muita semelhança ao livro de Êxodo. Seu conteúdo são as instruções para os seguidores de Jesus, no caso a comunidade de Mateus. O discurso é feito a partir do monte, segundo o Evangelho de Mateus “Jesus subiu ao monte”. Há nisto um forte paralelo com o local onde a lei foi dada para os judeus. É neste discurso que Jesus reinterpreta a Lei.  As bem-aventuranças são as bênçãos dadas aos da comunidade de Mateus que mantém as virtudes nela descritas, é aqui também que a singularidade da comunidade é defendida através das figuras “sal da terra” e “luz do mundo”, semelhantemente ao Pentateuco, onde os judeus se identificam como “o povo de propriedade exclusiva de Deus” ou no pai Abraão onde nele seriam abençoadas todas as famílias da terra. Para mostrar que Jesus tem tanta autoridade como Moisés, o primeiro discurso é finalizado com a maneira como Jesus ensinou, como de quem tem autoridade. É muito comum a utilização que Mateus faz do Antigo Testamento no seu evangelho, especialmente para demonstrar em Jesus o cumprimento de profecias. Isso confirma a idéia da comunidade para a qual Mateus escreveu ser uma comunidade de fé judaica, sendo esta baseada no messias Jesus.

6. CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL
             O evangelho de Mateus deve ser lido não como fruto da ruptura entre o cristianismo e o judaísmo.[7] O cristianismo na comunidade de Mateus deve ser entendido a partir da perspectiva social do chamado judaísmo formativo que vai de 165 a.C. a 100 d.C. Este período é caracterizado por muitos estudiosos como um período de natureza sectária.[8] A seita, que deve ser entendida aqui nesse contexto por “grupo”, é uma minoria que por sentir-se alienada por causa do grupo que lidera, grupo dominante, opõe-se a este. Por isso o grupo não dominante entende-se como os que possuem a verdade e que um dia será vingado por Deus. Nesse sentido, o cristianismo na comunidade de Mateus é uma nova vertente do judaísmo.
            Cada uma dessas comunidades sente-se como os justos de Deus. Os fariseus, os saduceus e os essênios são três das comunidades existentes daquela época e que alternadamente fizeram parte do grupo dominante. Normalmente aliados dos governantes, por isso gozando de certa influência política e social.
Flavio Josefo nos conta sobre os fariseus como alcançaram poder e influência política sob o governo da mulher de Alexandre Janeu, Alexandra: “Ela permitiu que os fariseus fizessem tudo; e também ordenou que o povo lhes obedecesse. Restaurou as práticas que os fariseus haviam introduzido, de acordo com as tradições dos antepassados.”  O grupo que aderia ao governo estava a serviço da classe dominante e servia ao governo como educadores, funcionários religiosos e administradores. Faziam parte da folha de pagamento do governante e desfrutavam de seus favores. [9]
Na época de Mateus , na verdade, a classe sacerdotal é quem fluía do apoio do governo até 70 d.C. Os publicanos serão os próximos clientes. No entanto, Mateus é o grupo marginalizado e é por isso que no evangelho de Mateus encontramos diversas vezes Jesus opondo-se aos fariseus. Mateus faz questão de enfatizar a sua comunidade como justa e como povo de Deus, em contraposição a dos fariseus. No contexto do judaísmo formativo, o cristianismo em Mateus deve ser visto como uma dessas minorias que sente-se perseguida pelo grupo dominante. São eles que são os injustiçados, os pobres, os humildes, os que choram, os que são perseguidos, os que agem em prol da paz. Daí o porque Mateus escreve as bem-aventuranças, porque entende sua comunidade como o povo do Reino de Deus que há de vingar, que não mais será subjugada pelos fariseus, eles é que são os “benditos” de Deus, outra palavra possível para makarioi, usada para designar pessoas que possuíam atributos que poderiam ser creditados aos deuses, ou seja os abençoados, os que tem a aprovação de Deus e que serão aceitos por ele. Ele inverte o sentido de “bendito”, pois no Reino são os fracos é que são honrados

7. ESTUDO DA FORMA
A seguir faço uma correspondência entre os dois textos que justificam o porque de considerá-los no presente trabalho e que por sinal justificam o quiasmo. Farei isso através do paralelismo.
Felizes os pobres de coração: deles é o Reino dos céus.(v.3)
Felizes os perseguidos por causa da justiça: deles é o reino dos céus. (v.10)
Concluímos pelo paralelismo que a perseguição é que levou a comunidade de Mateus a ser pobre.

8. INTERPRETAÇÃO
            “Felizes os pobres de coração: deles é o Reino dos céus.”
            Mateus fala aqui de sua comunidade. Colocando as palavras de Jesus para o seu contexto social, dentro da perspectiva social do judaísmo formativo. Sua comunidade não é formada pelos ricos fariseus que estão na folha de pagamento do governo. Por isso, eles que hoje são pobres é que na verdade são os que farão parte do verdadeiro governo, o Reino dos céus. O complemento “de espírito” ou “de coração” que não está presente no texto de Lucas, é termo de controvérsia entre estudiosos. Paulo Garcia propõe que pelo fato da comunidade ter optado por viver “em espírito” é que levou a comunidade a ser pobre.
              “Felizes os perseguidos por causa da justiça: deles é o Reino dos céus.”
            A palavra justo dentro do contexto social do judaísmo formativo indica a maneira pela qual as várias comunidades de fé se enxergavam. Sendo assim esta bem-aventurança refere-se a comunidade de Mateus e como ela deve-se entender dentro do contexto sectário em que vivia, o grupo dominante a persegue, os membros não são mais considerados judeus legítimos porque não freqüentam mais a sinagoga. Entretanto para Jesus, nas palavras de Mateus, ela é “bem aventurada” por causa de sua justiça, então o reino dos céus pertence a ela, é o reino do verdadeiro governo, que é o de Deus e não dos homens, não do grupo dominante.

9. CONCLUSÃO
            Fica evidente pela macro-estrutura literária de Mateus e o contexto social de sua comunidade dentro do judaísmo formativo que as bem-aventuranças antes de ser uma mensagem a cada um dos cristãos, referem-se principalmente a essa comunidade de fé de Mateus. Portanto, uma espiritualização do texto de forma a trazer aplicações individuais a cada cristão, pode forçar o texto a dizer algo que o autor não quis dizer.
No entanto, é possível entendermos de que forma as bem-aventuranças e o Reino dos céus pode ser uma mensagem de esperança as minorias de nossa sociedade atual, formada ainda pelos pobres e subjugados aos grupos dominantes de agora. A palavra pobre em grego, ptochoi, assim traduzida aqui em Mateus, tem a idéia de pobre miserável, de mendigo a mendigar, de pessoa que carece da ajuda dos outros.  
Em Jesus, pode-se ter a mensagem salvífica e libertadora da opressão dos poderosos como verdadeira esperança escatológica. Ainda assim cabe aos seguidores de Jesus a incumbência de levar a salvação através da solidariedade e de obras concretas para acabar com a fome e resgatar a cidadania de pessoas que vivem assim, é dessa forma que o Reino de Deus é implantado, onde houver o pobre e a libertação para ele, ali estará o Reino. Ali haverá salvação. Nesse sentido os pobres podem ser bem aventurados de verdade. Vale dizer que a comunidade de Mateus enxergava-se esperançosamente como os que não seriam mais derrotados ou perseguidos pelos opressores, mas aqueles a quem pertence o Reino.
Reino nos lembra poder, nos lembra política. Política no seu sentido mais puro e filosófico é a busca da felicidade comum. Acredito que os cristãos têm a incumbência de não somente prestar o mero assistencialismo, mas munidos dos recursos da fé, partir para uma ação política efetiva que leve o indivíduo a sair da situação de mero cidadão oprimido a conquistar seu espaço social, fazendo-o entender que sua má situação não se deve apenas a fatores individuais ou sobrenaturais, mas por causa de uma má política de grupos dominantes, que buscam seu próprio bem em detrimento das minorias, dos pobres. É preciso fazer essa classe lutar pelos seus direitos mais básicos. Sugiro que as comunidades saiam de seus guetos eclesiásticos e participem mais ativamente da vida política pelos direitos das minorias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bíblia – Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994.
Bíblia Sagrada – Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2003.
Bíblia Sagrada - Versão Almeida Revista e Atualizada.
Bíblia Sagrada – Versão Almeida Revista e Corrigida.
GARCIA, Paulo Roberto. As bem-aventuranças em Mateus – Uma proposta de estrutura literária, São Bernardo do Campo, Instituto Metodista de Ensino Superior – IMS, 1995, 108p.
GARCIA, Paulo Roberto. Sábado: A mensagem de Mateus e a contribuição judaica. São Paulo, Fonte Editorial, 2010, 200p.
Novo Testamento interlinear grego-português. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.
OVERMAN, J. Andrew. O evangelho de Mateus e o judaísmo formativo – O mundo social da comunidade de Mateus. São Paulo: Loyola, 1997,171p.


[1] Bíblia – Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994.
[2] Bíblia Sagrada – Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2003.
[3] Bíblia Sagrada - Versão Almeida Revista e Atualizada.
[4] Bíblia Sagrada – Versão Almeida Revista e Corrigida.
[5] Novo Testamento interlinear grego-português. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.
[6] GARCIA, P. R. As bem-aventuranças em Mateus, p.42-43.
[7] GARCIA, Paulo Roberto. Sábado, p.17.
[8] OVERMAN, J. A. O evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.21.
[9] OVERMAN, J. A. O evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.25.

Um comentário:

  1. Parabéns André!

    O trabalho é direto, bom de ler e fácil de entender seus objetivos. Além disso, como eu disse noutra ocasião, este trabalho mostra o valor de uma boa pesquisa bibliográfica.

    Sem dúvida, um primeiro passo promisso para a uma possível carreira exegética.

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